sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

O Livro da Selva


AVISO: o texto a seguir é uma combinação descoordenada 
de devaneios, carentes de fundamentação científica respeitável. 
O assunto provavelmente já foi filosofado por algum sacana
que nasceu séculos antes de mim só para roubar minhas ideias. 
Porém, se não tiver nada melhor para fazer e insistir na leitura, 
a parte boa é que não usarei palavras difíceis nem elucubrações 
metafísicas para tornar as coisas mais complicadas do que já são.

A pequena parte útil do meu cérebro costuma emitir zumbidos irritantes de alerta toda vez que identifica a expressão “natureza humana” em uma frase. Por um longo longo tempo segui a vida sem ter a mínima noção do motivo pelo qual isso me incomodava. Afinal, sempre há algo mais importante em que se pensar, e todos aprendemos a viver com pequenos desconfortos.
Mas chega um dia em que o incômodo vence a preguiça. De tanto ouvir “a natureza humana é egoísta”, “não existe isso de natureza humana”, “o ser humano é bom, o mundo que é mal”, e aproveitando que minhas séries favoritas e o futebol brasileiro estavam em férias, me pus a refletir sobre o assunto.
O primeiro passo: fazer o máximo de esforço para esquecer todas as besteiras que fizeram minhas sinapses estalarem e começar do zero. Será que existe essa tal natureza humana? Mas eu nem sei o que é isso. E, se não sei o que é, não vou reconhecê-la quando a vir. Então, precisamos voltar mais um pouco e começar do menos um: o que seria a “natureza humana”?
Bem, a natureza de uma coisa é aquilo que faz a coisa ser o que é. O que nos permite diferenciá-la das outras coisas diferentes dela. Logo, a natureza humana seria a(s) característica(s) essencial(is) de um ser humano. Aquilo que nos permite saber que no ponto “A” estamos olhando para um homem, que resplandece natureza humana, no ponto “B” para um símio, que exibe sua natureza simiesca, e no ponto “C” para uma galinha com sua natureza galinácea.
Logo, a natureza humana deve ser algo que está presente nos seres humanos, apenas neles, e em nenhuma outra espécie; e mais, algo que todos os seres humanos tenham, obrigatoriamente, em comum.
Uma vez que atinei com essa definição, percebi por que os debates tradicionais sobre natureza humana me aborrecem: pela tentativa de associar o conceito a padrões de comportamento, a instintos, ou, pior, a uma espécie de predestinação biológica. Posso não saber o que a natureza humana é, mas todas essas relações me parecem mais adequadas para demonstrar o que ela não é.
A natureza humana não pode ser “instinto”, simplesmente porque todos os animais tem instintos. Até nossa preferência por viver em sociedade, rituais de afirmação, ciclos de amadurecimento, encontram paralelos em outras espécies. A presença de instintos naturais prova, sim, que não nascemos “zerados”, mas nada esclarece sobre a natureza humana.
A qual não é, tampouco, “padrão de comportamento”. Aliás, nada há de mais típico no comportamento humano do que a variabilidade. Encontramos lado a lado nos jornais notícias sobre escândalos bilionários de corrupção e catadores de lixo devolvendo malas de dinheiro (quem será que perde todas essas malas de dinheiro, aliás?). O padrão é justamente a falta de padrões.
“Espera um pouco aí. O ponto é que o termo natureza humana tem sido usado, há bastante tempo, com esse sentido, de características que seriam comuns aos seres humanos, e não com esse outro de essencialidade que você inventou (ou copiou de algum fóssil).”
Exato, esse é o ponto, contestar a definição de natureza humana como "traço de comportamento invariável". Porque é uma classificação imprecisa, inadequada, nociva.
Sim, nociva, porque as palavras tem poder. E o poder da "natureza" tem sido usado para fortalecer, por exemplo, o discurso da “predestinação”. A velha história de “não podemos fazer nada, a natureza humana é assim mesmo”. Essa desculpa é tão furada que serve igualmente a vários propósitos: se você é mesquinho e ganancioso, não é sua culpa, a “natureza humana” é que é egoísta. Mas se você é compassivo, solidário, daqueles que sente um aperto no coração quando vê moradores de rua com frio e cachorrinhos famintos, está expressando a bondade natural do ser humano. Nascemos angelicais. O mundo é que é ruim, que nos obriga a fazer coisas que não queríamos, a fechar os olhos para as injustiças. Só não consigo entender uma coisa: se somos naturalmente bons, de onde viria toda a maldade?
“Ah, mas então a presença de injustiças prova que a natureza humana é má e egoísta mesmo.”
Não, besta. E não é, se não por qualquer outro motivo, simplesmente porque o egoísmo é um comportamento observado também em outras espécies. Então, mesmo que sejamos egoístas “de berço” (o que é bastante discutível), isso não é a “natureza humana”. É só mais um instinto primitivo que falhamos em controlar.
Para que serve, então, proclamar que nascemos de um ou de outro jeito, que somos ou deixamos de ser isso ou aquilo? Talvez para nos convencer de que há coisas que não podem ser mudadas. Que construir um amanhã que realmente mereça esse nome está além de nossas forças.
Talvez esteja mesmo. Mas, entre a realidade sombria em que vivemos e uma impossibilidade luminosa, escolho acreditar no impossível. Por isso, quando escutar de novo que "a culpa é da natureza humana”, já sei como calar o zumbido. A natureza, para quem se interessar, passa no Discovery Channel. Vamos usar o nome certo: escolhas. São elas, somente elas, que definem nossas vidas e transformam este mundo. Se somos mesquinhos, gananciosos, individualistas, nada de colocar a culpa na “natureza humana” nem no “mundo cruel e selvagem”. Estamos por aqui há mais de cinco milhões de anos. Temos idade suficiente para assumir a responsabilidade pelos nossos atos e, quem sabe, arrumar pelo menos um pouco da bagunça que largamos pelo caminho. A menos que alguém ainda acredite que a culpa é toda da serpente.

(Se o vídeo abaixo não estiver aparecendo no seu navegador clique aqui para a trilha sonora.)






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