Dizem os antigos que, num passado nem tão distante, o
grande sonho da classe média era a casa própria. Hoje, embora ainda haja
déficit habitacional, os desejos são mais complexos: segurança, justiça, menos
impostos, serviços públicos eficientes. O inconsciente coletivo tem encontrado
uma saída mágica para satisfazer esse amálgama de anseios: mudar pra Miami.
Não há como negar a atratividade do caminho mais
curto: o aeroporto, rumo a qualquer país que ofereça melhores oportunidades de
trabalho e condições de levar uma vida digna. A tentação cresce quando nos
deparamos com relatos de brasileiros que vivem no exterior. Destaco dois
textos, um sobre a Holanda (que já e viral) e outro sobre a Austrália.
O que estes países, e outros com padrão de vida
semelhante, teriam em comum, e de tão diferente do nosso Brasil? Analisando os
textos indicados, e combinando com impressões de amigos que moram ou visitaram
outros países com alto padrão de vida, concluí que os pontos fundamentais passam
longe de decisões sobre taxa de câmbio, maioridade penal, privatizar ou
estatizar, e miudezas afins. Claro que eles também precisam decidir sobre essas
chatices, e em geral o fazem melhor do que nós, mas não porque tenham alguma
superioridade inata. Não, a melhor condução dos temas caros a essas sociedades é o reflexo
da combinação de certos elementos nelas presentes, que agora
passaremos a deslindar.
Ingrediente
nº 1: RESPEITO
As pessoas se respeitam, entendem que o direito de um
termina quando começa o do outro. Imaginem um mundo em que ninguém fura fila,
nem rouba no troco. Os carros param nos sinais vermelhos (até nos amarelos) e
faixas de pedestres. As vagas para idosos e deficientes ficam esperando...
idosos e deficientes. Confesso que nunca vi esse mundo, mas dizem que existe.
E não é só: os cidadãos respeitam o Estado, e são
respeitados por ele. Ambos cumprem as leis e prezam os direitos de todos,
inclusive (e especialmente) das minorias. Lá, o século XV já terminou, e nem se
discute a “relativização” dos direitos humanos. Óbvio que, nem no melhor país
do mundo, há 100% de cidadãos cumpridores da lei. Mas vamos mesmo comparar com
o Brasil, onde o Estado é o primeiro a pisar nas leis que ele mesmo cria?
Ingrediente
nº 2: IGUALDADE
Um tema recorrente nos dois textos, que não é exclusivo
da Holanda e da Austrália, é a ênfase nos salários
justos. A diferença entre os menores e maiores salários é absurdamente
menor do que nos países ditos “em desenvolvimento”. Dizem até que por lá as
pessoas podem levar vidas dignas e confortáveis trabalhando em empregos que
exigem mínima qualificação acadêmica, como porteiro, lixeiro, etc.. As pessoas
que executam trabalhos braçais, ou que demandam menor esforço intelectual, não
se sentem servos, e os profissionais mais qualificados não se comportam como
lordes. Claro que estes ganham mais do que aqueles, mas nunca 20, 30 vezes
mais, como no Brasil.
Os salários justos são diretamente responsáveis por
duas diferenças marcantes entre “eles” e nós: o baixíssimo número de empregados
domésticos (“cada um lava seu banheiro”) e o...
Ingrediente
nº 3: SEGURANÇA
Caixas eletrônicos instalados nas ruas que funcionam mesmo por 24 horas. Poder andar com
tablets, notebooks, joias, relógios e afins sem medo. Sair à noite a pé, ou
utilizando o transporte público. Um mundo em que homicídios, estupros e
seqüestros ainda chocam, porque não acontecem todos os dias. Essa é a qualidade
de vida que só o dinheiro não pode comprar, e que não teremos aqui nem se
ganharmos um milhão de reais por mês.
Ingrediente
nº 4: AÇÕES GOVERNAMENTAIS
Nesses países as lâmpadas não se trocam sozinhas.
Seus governos não estão perfurando petróleo, mas atuam efetiva e eficazmente
para suprir ou, ao menos, fiscalizar e regular o atendimento das necessidades
básicas do povo: saúde, educação, transporte, segurança, energia elétrica,
saneamento. São Estados fortes, embora não necessariamente grandes: exatamente
o contrário do Brasil, paquidérmico, fraco, e ineficiente na maioria das suas
ações. Menos, claro, quando precisa defender os interesses daqueles poucos para
quem ele realmente governa. O que nos leva ao...
Ingrediente
nº 5: FOCO NO BEM COMUM
Embora esse elemento não seja citado expressamente
nos relatos que vem de além mar, é a peça quase invisível que sustenta toda a
estrutura. As pessoas nos países desenvolvidos não se comportam de modo tão
diferente dos brasileiros por mágicos sortilégios, ou mediante programação
genética. São diferentes porque se acostumaram a viver em sociedades que
buscam, de fato, prover uma vida melhor para todos. Que praticam o respeito mútuo, buscam a igualdade e a
justiça social. Podem não conseguir sempre, não são paraísos na terra, mas tentam ser. O Estado trabalha para o seu povo, e não contra ele. Em
resumo, visam o bem comum e alimentam um círculo virtuoso.
Aqui, como já apontamos em outros artigos, os
objetivos são outros. E os vícios tem o poder de se propagar bem mais
facilmente que as virtudes.
Nosso caminho, portanto, é mais longo. E penoso, pois
é como se estivéssemos tentando caminhar com duas bolas de chumbo acorrentadas
aos tornozelos. Mas já passou do momento de pararmos de obrigar os menos
afortunados a carregar todo o peso, para que uns poucos bem nascidos se sintam
mais leves. Precisamos quebrar as correntes. Até porque, na boa, a Austrália é
longe pra caralho.