Nove dias, doze corpos e cinco milhões de exemplares vendidos não
foram o bastante para que parassem de disparar tiros contra o Charlie Hebdo.
A segunda onda de ataques foi tangencial, sorrateira, ao ponto de se
negar como ataque. Refiro-me, claro, à tentativa de desviar o debate, que
poderia ser sobre a violência como forma de imposição da “verdade”, sobre um
mundo que cultiva fanáticos capazes de matar pessoas por causa de um desenho,
ou até mesmo sobre os limites da nossa tolerância com a barbárie justificada
pela “fé”. Mas nunca sobre os “limites da liberdade de expressão”.
Como a segunda onda já foi tema do artigo anterior, vamos ao seu
desdobramento. A terceira onda jogou fora o disfarce de elucubração teórica
que sua antecessora vestia e mirou diretamente na desconstrução da imagem das
vítimas. Não que eles merecessem ser assassinados, claro, mas o semanário era racista, xenofóbico e
ofensivo. Além disso, o que esses cartunistas vagabundos fizeram para virarem
mártires da liberdade de expressão?
Levar uma vida nobre e virtuosa não é pré-requisito para se tornar
mártir. Ser morto é.
Talvez nesse momento caiba a explicação de que essa divisão em
“ondas” não guarda relação necessária com a cronologia, mas apenas com a minha
percepção das reações do público. Ou talvez essa explicação seja desnecessária.
Sei lá.
Voltando ao que (não) interessa: a terceira onda, em si, é
natimorta. Já nasceu agonizante, encurralada entre a vergonha do que ela
própria pretendia dizer e a absoluta impossibilidade de trazer os mortos de
volta à vida para poder achincalhá-los com mais propriedade. Surge, então, a
quarta e última onda que identifiquei: a “amenização” da tragédia. Lamento,
mataram doze pessoas. Mas há tanta coisa pior acontecendo pelo mundo. Por que
tanta comoção em torno desse caso específico?
O argumento mais divulgado pelos adeptos da quarta onda é a
comparação entre o número de mortos na revista francesa e os produzidos pelo
grupo extremista Boko Haram na Nigéria. De fato, se formos contar cadáveres, o
massacre do Charlie Hebdo é numericamente insignificante
comparado com o da Nigéria, que é numericamente insignificante comparado com a
Guerra da Bósnia, que não chegou aos pés de uma única frente de batalha das
Cruzadas.
É evidente, portanto, que tanto a repercussão pública como o modo
com que cada evento nos impacta pessoalmente não depende só de números. Um
assassinato na porta do seu prédio certamente chamará mais sua atenção do que
uma dúzia de homicídios na Tailândia. Dois mil mortos na Nigéria hoje nos
incomodam mais do que os milhões caídos durante as Cruzadas, há mais de
quinhentos anos. Tempo, espaço, identidade cultural, grau de exposição na
mídia. Uma infinidade de fatores afeta nossa visão dos fatos. Especificamente
sobre Boko Haram x Charlie
Hebdo, recomendo a seguinte matéria: “Por
que nos mobilizamos pela França, mas nos esquecemos da Nigéria?”.
Feita a recomendação, é claro que se resolvi escrever este artigo
e o conduzi até aqui é porque acredito ter algo a acrescentar. Há um elemento crucial
que diferencia o ataque à revista do massacre na Nigéria, do conflito
sino-palestino, e de qualquer outra guerra religiosa.
Escrevi, na coluna anterior, que meus deuses eram os Vingadores e
os Jedi. Imagino que ninguém tenha pensado que faço orações para o Thor (o que
até faria sentido, já que ele é um deus mesmo!) ou para Luke Skywalker. Os leitores
podem ter imaginado, talvez, que prefiro cinemas a igrejas. Refletindo um pouco
além, talvez encontrassem o significado de um tempo em que preferimos cinemas (ou livros,
quadrinhos, séries de TV) a igrejas. Ou, pelo menos, um dos possíveis
significados: a mídia de massa é a “religião” do século XXI. Para ser mais
preciso, a cultura popular, disseminada pelos meios de comunicação de massa,
desempenha com grande eficiência um papel que no passado era predominantemente
das religiões: manter nossas mentes ocupadas com fantasias, fábulas, mitos,
parábolas, enfim, com qualquer coisa que não seja o mundo real. Não importa se
uma vende Luke Skywalker x Darth Vader, e a outra, Deus x O Diabo; pensar em Guerra nas Estrelas ou em Sodoma e Gomorra se equivalem no essencial, que é o
“não pensar” na realidade.
O impacto das comunicações de massa e a ameaça que elas podem
representar às religiões já foram percebidos há décadas pelas Igrejas. O templo
do século XXI é o site na Internet, a emissora de rádio,
o canal de televisão, a rede social. Já que é impossível combater a
disseminação dos meios de comunicação, vamos ocupá-los com a Palavra.
Foi aí que pensei: se aqueles malucos tivessem dinheiro para
comprar um jornal ou uma rede de televisão, provavelmente não metralhariam a Charlie Hebdo. Como as economias
deles só foram suficientes para meia dúzia de armas, precisaram combater ideias com
balas. E só então percebi a peculiaridade do atentado à (racista, não-é-racista-porra-nenhuma,
xenofóbica, de-jeito-nenhum, islamofóbica, você-que-é, de mau gosto,
vsf-você-nem-sabia-que-existia-essa-porra-de-revista-antes-do-ataque) revista
francesa: eles não foram até lá para matar pessoas. Não foram até lá para
“vingar” o profeta, ainda que pudessem de fato acreditar que o propósito fosse
esse, assim como acreditavam que seriam recebidos por dezenas de virgens no
paraíso.
Eles foram à Charlie
Hebdo para dizer que a verdade
que eles professam não admite contraditório. Para ensinar que quem pensa
diferente deles deve se calar. Que, a cada derrota que sofrerem na batalha das
ideias, cobrarão o preço em sangue.
Por isso, repito: não é sobre “limites da liberdade da expressão”.
Não é sobre “respeito a crença alheia”. Não é sequer sobre preconceito ou
intolerância. É sobre racionalidade x loucura. Canetas x metralhadoras.
Ceticismo x dogmatismo. É mais uma face do conflito entre o futuro com que
sonhamos, no mínimo, desde o Renascimento, e um passado de trevas, ignorância e
destruição sem sentido que se recusa a morrer.
Pensei em concluir dizendo que, por tudo isso, eu sou Charlie,
sim. Mas a verdade é que, daqui a algumas semanas, as lembranças dos eventos de
sete de janeiro começarão a desvanecer. Merecerão alguns minutos nas
retrospectivas de 2015, talvez notas de rodapé nos livros de história, até que
se tornarão uma curiosidade do passado.
Melhor dizer que sou humano. E fazer o que posso para que, a cada
dia, mais e mais pessoas digam o mesmo, antes de se afirmarem católicas,
evangélicas, judias, islâmicas, xintoístas, sunitas, xiitas. Que se reconheçam
pelo que tem de comum, e não por diferenças imaginárias. E, se isso não for
suficiente para que desistam de se matar, que pelo menos arrumem desculpas
melhores do que a defesa de suas crenças. Porque, não sei quanto a vocês, mas
eu jamais seguiria um pregador que empunhasse uma kalashnikov.
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