Há vinte anos, no último barraco do último beco da favela mais pobre e violenta do Rio de Janeiro, nasceu João. A equipe médica tinha apenas uma pessoa, que jamais se sentara num banco de escola, mas que conseguiu trazer ao mundo o próprio bebê.
No mesmo dia, na mesma cidade, a poucos quilômetros do primeiro cenário,
num iluminado quarto de um hospital cinco estrelas, cercado de médicos, enfermeiros e fotógrafos, nasceu
Luiz.
Se nossos personagens simplesmente seguissem os caminhos que pareciam
traçados desde seu nascimento, jamais se encontrariam. Mas suas trilhas
acabaram se cruzando num ponto inesperado: como alunos da mesma Universidade.
Luiz, primeiro colocado no concurso de seleção, para grande orgulho de seus
pais; João, ocupando uma vaga reservada por meio de ação afirmativa. Sua mãe
não entendia bem o que significava entrar para uma Universidade, mas pela
reação do filho, achou que era uma coisa boa, e ficou feliz por ele.
Mas para João ainda não era tempo de celebrar. Sabia que terminar o
curso seria muito mais difícil do que iniciá-lo. Por isso, quando surgiu a
oportunidade de concorrer a uma bolsa de Iniciação Científica, agarrou-se a
ela. Luiz, ansioso por construir um currículo irretocável, também se inscreveu.
O dia da publicação dos resultados guardava duas grandes surpresas para
João. A primeira, ver o seu nome no edital, como um dos novos bolsistas. A
segunda veio ao acessar o fórum de discussões do curso. Não era imune ao
orgulho, e esperava que algum dos seus colegas o parabenizasse pelo feito. Em
vez disso, deparou-se com a seguinte mensagem, assinada por Luiz Otávio:
“Estou absolutamente revoltado! Acabou de sair a lista de projetos
aprovados para a iniciação científica, e adivinha? Tô fora!! E o pior nem é eu
estar fora não, é que tem nome de cotista lá! O cara não devia nem estar na
faculdade! Não satisfeitos em colocaram esse povo pra dentro, agora ainda estão
dando mais vantagens? Tudo que eu queria era disputar de igual pra igual. Mas
parece que isso é pedir demais nesse país de m..., que adora passar a mão na
cabeça de coitadinho!”
João leu e releu o texto, até que se sentiu forçado a responder.
“Caro Luiz Otávio,
Meu nome é João Augusto, e sou o cotista que teve o projeto aprovado. Creio
que nunca nos falamos antes. Na verdade, tenho quase certeza de que até que o
meu nome aparecesse naquela lista eu era invisível para você, apenas mais um
dos muitos que, como você escreveu, não deviam estar aqui. Lamento que não
tenha conseguido emplacar seu projeto desta vez. Lamento ainda mais que nada do que eu tenho a dizer possa amenizar sua indignação.
Inicialmente, você se revolta com a minha presença na Universidade. Acha
que eu não devia estar aqui. E tem razão. Afinal, nenhum daqueles que na infância
chamei de amigos está. Volta e meia, ainda me pego pensando que eu devia estar
com eles. Mas a maioria deles estão mortos, e ainda não quero morrer.
Outros seguem vivos, flanando pelos mesmos becos e telhados em que brincávamos quando crianças. Mas agora seguram armas, ansiosos para se juntar aos que já se foram. Uns poucos,
posso dizer que tiveram melhor sorte: estão limpando as ruas pra você e pros
seus amigos, lavando seus carros, assentando os tijolos das suas casas.
Eu sei, eu devia estar com eles. Mas decidi não estar, e acho que já cheguei
muito longe para voltar atrás.
Depois, você reclama pelas mesmas vantagens que eu tive. Também não vejo
como ajudá-lo nisso. Não posso voltar no tempo e transferir para você a
ausência que herdei do meu pai, a miséria e desespero que choravam, todos os
dias, nos olhos da minha mãe. Tampouco posso fazer com que sua pele ganhe a cor
que brilha na minha, pois esta herdei dos meus ascendentes, que foram
despejados aos montes nesse país, e nele sobreviveram entre correntes, estacas
e chicotes. Eles sangraram muito para que eu chegasse até aqui, e essa é a
única herança que aceito e da qual realmente me orgulho. Todas as outras que a
vida tentou me dar, eu rejeitei antes, e rejeito agora. Não posso concedê-las a
você, e mesmo que pudesse não o faria, porque não me atrevo a rejeitar um dos poucos ensinamentos que minha amada e iletrada genitora conseguiu me passar: o mal, não o desejamos a ninguém. Então, lamento novamente, mas é impossível
competirmos em condições de igualdade.
Finalmente, você se indigna por viver num país de me≠d@. Estamos juntos nessa. Mas não vou
passar a mão na sua cabeça. Vou apenas seguir lutando para que amanhã seja
melhor do que hoje. Para que os meus filhos também possam cursar esta Universidade. E que, quando o momento deles chegar, ninguém lhes diga que este não é o lugar onde deviam estar.
Boa noite e boa
sorte.”
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