quarta-feira, 19 de março de 2014

No escuro, ninguém vai ouvir você gritar


Pessoas assustadas costumam fazer coisas estúpidas. Com certeza há extensos tratados de psicologia sobre isso, mas extraí o conhecimento de algo mais prosaico: filmes de terror. Mal os personagens são apresentados, já sabemos que os primeiros a morrer serão aqueles que parecem mais apavorados. O medo os faz correr quando deviam lutar, a ficar paralisados soltando gritinhos histéricos quando deviam correr, ou a fazer qualquer outra burrada que os leva direto para o cadafalso.
Na vida real, assim como nos filmes, o medo não é um bom conselheiro. Para reafirmar essa premissa e saciar o eventual academicismo de alguns leitores que possam não se satisfazer com a cultura pop como fonte primária, seguem extratos de pura filosofia e fina literatura:

“Nenhuma paixão pode, como o medo, tão efetivamente
roubar o espírito da capacidade de agir e pensar.” (Edmund Burke)

“Um dos efeitos do medo é perturbar os sentidos e fazer
que as coisas não pareçam o que são.” (Miguel de Cervantes)

Desafortunadamente, estamos presenciando uma demonstração da verdade dessas afirmativas. Formou-se uma onda idiotológica contra os “direitos humanos”, afirmando que eles só servem pros “bandidos” e que grande parte da criminalidade é por causa dessas “frescuras”. Embora o impacto possa estar sendo reverberado pelo nosso excesso de conectividade, a impressão é de que há uma tendência real de propagação dessas teses. Até porque, como nos ensinou a Matrix, a realidade é o que percebemos.
Pois, se conseguissem raciocinar, perceberiam que a “solução” que estão propondo já é praticada no Brasil há décadas. Afinal, o que podem querer aqueles que reclamam de “direitos humanos pra bandidos”? Que a polícia atire pra matar; que os presos sejam jogados para apodrecer, ao arrepio das leis; que não seja garantida a integridade física, nem a mínima dignidade para os que caírem no sistema penitenciário; de preferência, que nunca mais voltem para as ruas.
O primeiro dogma, portanto, é que a polícia tem que “sentar o dedo”. Ah, se não fosse esse negócio de direitos humanos e deixassem os bons homens da lei mandar a vagabundagem pro saco!
Não seja por isso. Ainda que sob (parcos) protestos, a polícia brasileira é especializada em produzir cadáveres. A média nacional, em 2012, foi de cinco mortos por dia. Somente a polícia do Rio de Janeiro matou mais do que todos os policiais dos Estados Unidos juntos. E não é a única que pode se orgulhar do feito, a PM de São Paulo ostenta o mesmo título. Morram de inveja, caubóis. Em compensação, os norte-americanos prendem muito mais. No ano de 2008, para cada morte provocada pela polícia, houve mais de 37.000 prisões. Em São Paulo, apenas 348 prisões por óbito. Ainda bem que não somos como eles, afinal, os nossos presídios já estão lotados.
Falando em presídios, vamos ao segundo dogma, apodrecer na prisão. Se o suspeito escapa do “auto de resistência”, ele passa para as malhas do Poder Judiciário, e do sistema penitenciário brasileiro. Onde, naturalmente, terá direito a um julgamento justo, respeitando-se o princípio da presunção de inocência, e após, se condenado, cumprirá sua pena numa cela individual, como manda a lei, comendo e bebendo de graça, participando de programas de ressocialização. Tudo garantido pelos militantes dos direitos humanos, que passam todo seu tempo defendendo bandidos. Um sonho, não é?
Só pode ter sido um sonho mesmo. Vamos à realidade. O sistema prisional brasileiro tem 310 mil vagas, e quase 550 mil presos (dados de 2014). Um estudo de 2013 apontou ainda que 44% da população carcerária era provisória, ou seja, sequer foram ainda julgados e condenados pela Justiça. Ganhou notoriedade recentemente o caso de um ator que foi “confundido” com um assaltante e passou mais de dez dias detido. Pasmem, ele não está sozinho, apesar de toda a chateação desses Zés ONG.
Para completar o quadro de estrita legalidade, muitos dos já condenados cumprem pena de forma irregular em delegacias. Num esforço para reduzir a população carcerária, a Secretaria de Justiça do Paraná tem realizado mutirões para análise de processos e expedição de alvarás de soltura. Desde junho de 2011, foram liberados 5.082 detentos. Mais da metade já havia cumprido suas penas e foram “esquecidos” atrás das grades. Reparem que estamos destacando o Sul-Sudeste, estados que, em tese, seriam os mais desenvolvidos da Federação. E que exercitam a boa prática de prender e jogar a chave fora.             
Mas pelo menos a integridade física dos presos o Estado garante, não é? Imagina o escândalo que faria o “direitos humanos”, se morre um vagabundo desses na cadeia!
Se morresse um, talvez eles armassem mesmo uma gritaria. Mas, como morre um a cada dois dias, falta voz. “Ah, mas são os presos mesmo que se matam.” Na maioria dos casos, sim, até deve ser. O que é um espanto, considerando a mordomia de que desfrutam na prisão. Mas não deixa de provar que o Estado está se lixando pro que acontece aos seus custodiados.
A situação é tão bizarra que, consolidando as informações oficiais de 24 estados (não forneceram dados Bahia, Alagoas e Rondônia) a média de homicídios dentro das unidades prisionais, que deveriam ser ambientes controlados, é maior do que a média fora da prisão: 39,6 x 26,5 (por cem mil habitantes). E, claro, quem morre na prisão não volta pras ruas. Assim, caem também o terceiro e o quarto dogmas. Mas não se preocupem, a liberdade de continuar difundindo-os está garantida pelo artigo 5º, inciso VI da Constituição.
Concluímos, portanto, que a claque do “direitos humanos para humanos direitos” não tem nada a lamentar. Ao contrário, deviam comemorar por viver num país que segue à risca o que eles pregam. Não precisam mais clamar pela guerra, pois os tambores já estão rufando há muito, muito tempo. E os espólios são colhidos todos os dias. Ultimamente, andam sendo até arrastados pelo asfalto.

“Podemos facilmente perdoar uma criança que tem medo do escuro; a real tragédia da vida é quando os homens tem medo da luz.”
Platão



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