De toda a enxurrada de argumentos
que ainda incensam a agora já minguante onda de revolta com a realização da
Copa do Mundo (digo, Copa do Mundo da FIFA, avisaram que é obrigatório citar a
FIFA), me deparei com um que mereceu atenção especial: de que, ao prestigiá-la,
estaríamos sendo coniventes com os desmandos da entidade-mor do futebol e com
todos os possíveis casos de corrupção relacionados à organização do torneio.
Pior, considerando que inclusive morreram operários nas obras da copa, a cada
jogo que assistíssemos, estaríamos passando a mensagem de que não nos
importamos com gotas de sangue misturadas ao concreto dos nossos circos.
Numa primeira análise, o argumento
parece bem difícil de ser refutado. E não é válido apenas para o caso da Copa
do Mundo (da FIFA!). Se houvesse boicotes aos produtos de todas as empresas
envolvidas com ilícitos, elas acabariam quebrando. Logo, deixar de consumir
seria o meio mais eficaz de protesto.
Como o caminho parece
cristalinamente adequado, vamos tentar seguir por ele. Porém, colocar em
prática essa teoria, com justiça, só será possível se os nossos julgamentos
morais forem infalíveis. Melhor explicando: precisamos ter certeza de que não agiremos
contra partes inocentes, com base em conclusões apressadas ou equivocadas.
Aliás, falando em base, logo nos lembramos de um caso famoso (olha o link!) que
demonstra melhor do que qualquer filosofia os perigos de adotar atitudes
extremas confiando em boatos, fontes secundárias, ou no senso comum.
Isso apenas ilustra um fato que pode
ser um choque para a maioria das pessoas: nem sempre estamos certos sobre tudo.
Assim, é impossível que sejamos absolutamente justos. Claro que podemos colocar
os pés no pragmatismo, ou quem sabe no maquiavelismo, e assumir que mesmo não
estando sempre certos, estaremos na maioria das vezes. Afinal, somos espertos e
bem informados. Ainda que cometamos um erro ou outro, na média, cortaremos mais
ervas daninhas do que raízes saudáveis.
Satisfeitos com essa vantagem
matemática, poderíamos iniciar uma cruzada de absoluta honestidade ideológica. Um
bom primeiro passo seria uma radical mudança nos padrões de consumo. Afinal, a
grande maioria, se não todas as grandes empresas, estão constantemente
envolvidas em denúncias de corrupção, ou, no mínimo, respondendo a processos
sobre infrações trabalhistas e sonegação fiscal. Isso para não falar das
violações aos direitos dos consumidores. A mesmíssima lógica que fundamenta a
natimorta proposta de boicote à Copa do Mundo (da FIFA) deveria ser aplicada às
empresas de telecomunicações, cujo processo de privatização foi alvo de tantas
ou mais denúncias de irregularidades do que as obras do torneio de futebol.
Também não poderíamos utilizar o metrô em São Paulo, ou os ônibus no Rio de Janeiro. E de modo algum pagar impostos, pois “todo mundo sabe” que grande
parte do que pagamos acaba sendo desviado e financiando a corrupção.
Pode até ser que alguns poucos
reúnam a fibra moral e capacidade de auto-sacrifício suficiente para agir dessa
maneira. O que seria fútil, pois se afastariam de tal maneira da sociedade que
não teriam a menor possibilidade de transformá-la. Na prática, a tentativa de
impor padrões como esses acaba constrangendo e afastando as pessoas. E o
objetivo do discurso deve ser esse mesmo. “Reclama que o estádio foi
superfaturado, mas assistiu ao jogo? Não pode reclamar!” “Falou
mal da Guerra do Iraque, mas foi passear na Disney? Hipócrita!”
A verdade é que
precisamos viver neste mundo enquanto tentamos mudá-lo. Até porque não temos
outro. E não é um mundo fácil: é complexo, contraditório, injusto, imperfeito.
Assim como nós. Mas o fato de não podermos ser todos Gandhis ou Mandelas não
significa que precisamos nos resignar a ser Homer Simpson. Claro que devemos
evitar as grandes incoerências. Ser honestos, antes de reclamar da corrupção.
Juntar nosso lixo, antes de reclamar das ruas sujas. Enfim, lutar as pequenas
batalhas. Mas sem a pretensão de sermos os juízes e guardiões da moral humana. Se
ao final de cada dia tivermos sido autênticos o bastante para passar no nosso
próprio julgamento, e sentirmos que ainda há coragem para lutar no dia
seguinte, já poderemos nos orgulhar. Não por termos saído da escuridão, mas por
insistirmos em brilhar, mesmo quando mergulhados nela.